A Qualidade da Água de São Luís
A água é um bem universal, a começar pelos ecossistemas que a tudo sustentam. Se perguntarmos a uma criança a quem pertence a água da chuva, provavelmente teremos uma resposta mais simples, mais divertida e com mais coração mas alinhada com essa linha básica. Mas vivemos tempos estranhos onde somos ensinados (treinados ou forçados) a aceitar que nada tem valor intrínseco mas que tudo tem que ser reduzido a uma expressão monetária.
A água tem esta condição de ser indispensável para todos os ecossistemas à qualquer escala, incluindo o bem-comum da humanidade. Esta condição é reconhecida pela Nações Unidas que defendem o acesso á agua e esgotos como serviços públicos essenciais. Entretanto, mais e mais, esta posição de “água como bem público” está sendo minada por dentro dos órgãos públicos que aquiescem ou alinham-se abertamente com interesses privados. Á água é o “ouro-azul” deste século de capitalismo selvagem – quem dominar as bacias e fontes, tem o “direito” legal de explorar e monetizar este “recurso”. E nada mais adequado para explorar esse nicho do que os interesses privados agindo dentro da lógica neo-liberal de crescimento infinito a qualquer custo. É só ler os comunicados e relatórios das empresas públicas situados em linha para serem privatizadas que acharão os mesmos sinais de sempre – justificam-se mudanças profundas com o catecismo dos fatores de mercados, a liberalização como o único caminho e o crescimento económico como única medida, como se esse fosse distribuído democraticamente. Após minérios e hidrocarbonetos, a corrida para a dominação da água para o lucro privado está em pleno curso.
Mas o que isto tem a ver com São Luís? A situação da água numa pequena aldeia como São Luís não parece ser uma exceção à essa norma de privatização de recursos essenciais que nos é imposta tanto de dentro como de fora.
Mas vamos lá ver o que se passa…
O abastecimento de água na Aldeia de São Luís foi feito através de poços até finais da década de 1960 e depois através de furos para água com tratamento, monitorização e distribuição em rede pública à cargo da Junta de Freguesia. Durante os próximos 50 anos, o abastecimento foi feito pela Junta de Freguesia e não há evidencias ou queixas registadas sobre a qualidade da água no período. Atualmente, a Aldeia é abastecida atualmente por um sistema autónomo apoiado em dois furos para água e um poço, além de uma Estação de Tratamento de Água (ETA) e o tratamento de resíduos (ETAR). Toda a infraestrutura foi implantada com dinheiros do município.
Através de um contrato de gestão assinado em 2009, o Município de Odemira, em regime de parceria Pública-Pública, delega o abastecimento de água à empresa Águas Públicas do Alentejo (51% Estado e 49% Municípios). Pelos idos de 2010 começa um programa de monitoramento da qualidade da água com uma amostra por trimestre e parâmetros selecionados…mas como definido por lei, quanto menos ligações à rede, menor é o número de parâmetros a serem legalmente analisados. Note-se que esse enfoque segue uma linha de custo empresarial e não uma linha de análise de riscos à saúde publica de pequenas povoações. O funcionamento da ETA, antes feita por funcionários do município, passa aos encargos das Águas do Alentejo, a qual subcontrata uma empresa de serviços terceirizados que se desloca ao local em caso de necessidade…
A qualidade da água segue em altos e baixos de 2010 até 2014 com vários incumprimentos para Ferro e Manganês. Mesmo com apenas uma amostra por trimestre, parece não ser possível equilibrar o processo de tratamento. Em meados de 2014 a população começa-se a queixar de episódios frequentes de turvação excessiva da água da rede. Esta situação de episódios de “agua suja” agrava-se em 2015 e 2016 com ainda maior frequência de incumprimentos para Ferro, Alumínio e Manganês mas agora com teores crescentes de Cádmio e sérios incumprimentos para esse metal carcinogénico. No verão de 2015, a população começa a dar sinais de indignação e revolta. Nesta altura, ficou claro que a nossa água era (e continua a ser) inadequada para consumo humano.
O que fazer? Após várias reclamações, todas recebidas mas com respostas evasivas, ficou evidente que deveríamos fazer algo coletivo que tivesse um maior peso.
Surge a ideia de organizarmos uma Caminhada Pela Água.
A caminhada seria uma exploração coletiva do percurso da água tomando a Aldeia de São Luís como exemplo e ponto de referencia na bacia hidrográfica da Ribeira do Torgal. Também seria uma oportunidade para acompanharmos o percurso da água pela Aldeia…
Queríamos compreender, respeitar e reverenciar o ciclo da água. No final, essa caminhada faria parte de um plano mais amplo de reconhecimento coletivo da situação socio-ambiental ao longo da bacia hidrográfica do Rio Mira. Tudo bem até este ponto, mas se a água é vida, então temos que começar por entender o ciclo da água na vida da Aldeia! Estamos com problemas de abastecimento e de qualidade de água (turvação e incumprimento crónicos dos parâmetros máximos para metais pesados), não sabemos as razões e nem sequer temos alternativas. Ficou claro que necessitávamos uma componente prática e decidimos realizar uma campanha independente de colheita e análise de nossas águas.
A caminhada aconteceu no dia 9 de Outubro 2016 com a participação de 48 pessoas da Aldeia. Começamos pelos poços antigos na Aldeia, alguns selados em concreto e outros ainda em uso pela população. Depois visitamos a atual extração e tratamento de água, a estação de tratamento de águas residuais e seguimos as linhas de descarga através de terrenos agrícolas e de silvicultura.
Tivemos um ponto de reflexão e contemplação numa fonte antiga e ao longo de um pequeno riacho que vai alimentar a Ribeira do Torgal. Ao longo do caminho, conversamos sobre tudo e mais alguma coisa, trocamos impressões e histórias sobre a Aldeia e colhemos amostras de água.
As questões que foram surgindo podem ser resumidas assim:
• De onde vem a água que bebemos? Será que se vai manter assim? Quem decide isso?
• De onde vem a água que rega as nossas hortas? Será que se vai manter
assim? Quem decide isso?
• Sabemos qual qualidade destas águas?
• Qual é o processo que favorece a regeneração de nossas nascentes? Como podemos apoiar a água para que siga o seu curso natural?
• Quais são os fatores de fundo relacionados com a situação da água (alterações climáticas, aumento populacional e aumento da pegada ecológica, poluição, destruição de habitats, contaminação de nascentes e cursos de água, privatização e gestão da água como um negócio (oligopólio)
Ao final da caminhada, partilhamos uma almoço de celebração na Junta de Freguesia. Ali pelo meio de tratores e máquinas, firmamos a ideia de um grupo informal da Água apoiado pela Transição São Luís e operando por donativos particulares para cobrir custos de análises.
Os resultados analíticos de nossa colheita confirmaram a presença de metais pesados acima dos parâmetros máximos permitidos. Fomos atrás dos resultados públicos das colheitas trimestrais desde 2010 (uma epopeia, diga-se de passagem) e constatamos padrões e tendências preocupantes para metais pesados. Com todos os dados disponíveis naquela altura, fizemos um diagnóstico da situação, produzimos alguns documentos explicativos e fomos bater na porta da Câmara com toda as nossas evidências. O nosso primeiro encontro na Câmara Municipal foi memorável…de antemão, tínhamos trinta minutos mas, após a apresentação, a conversa alongou-se por mais três horas. Ficou claro que agora nós sabíamos aquilo que o outro lado também sabia mas que relutava em tornar público.
Apesar do tempo decorrido, dos impactes potencias e do processo algo tortuoso para revelar as dimensões do problema, decidimos de comum acordo cooperar com a Junta de Freguesia de São Luís, Câmara de Odemira e mais recentemente com a empresa Águas do Alentejo para formular soluções a curto e longo prazo.
Identificamos um dos furos como a fonte de Cádmio e sugerimos a sua imediata exclusão do sistema. Para suprir o deficit de vazão, o nosso Presidente da Junta entrou em campo e identificou um furo em terreno privado que poderá ser adicionado à rede. Falhando isso, estamos preparando uma proposta de furo em terrenos próximos da adutora principal e, ao mesmo tempo, a Câmara está verificando as possibilidades de abastecimento de urgência por tanques dos Bombeiros locais. Acreditamos que estamos no bom caminho e esperamos formular uma solução eficaz antes do verão que se aproxima.
A solução a longo-prazo (horizonte de 2-4 anos ou mais) envolve o abastecimento a partir da Barragem de Santa Clara com estações elevatórias (bombeamento) e cerca de 14 km de adutoras com uma ascensão vertical de mais de 100 metros. Como isso requer interconexão com outros sistemas, (Almograve e Vila Nova de Milfontes) o custo total deve exceder três milhões de euros. Além dos altos investimentos de instalação, temos de contar ainda com custos operacionais elevados, especialmente combustíveis fósseis e manutenção. Temos dúvidas se essa é a solução mais eficaz e se irá contribuir para a resiliência local e regional.
O que nos motiva? Porque estamos metidos nisso?
O que nos motiva é simplesmente a saúde de nossos familiares e da comunidade. Estamos preocupados mas empenhados em contribuir para soluções eficazes e eficientes. Temos o dever de informar a população da Aldeia sobre os fatos e perceções mas evitando alarmismos desproporcionados.
O que almejamos?
Através da Transição São Luís, temos agora um grupo cívico e apartidário cujo objetivo é ajudar a solucionar o problema da contaminação da água por metais pesados em São Luís de uma maneira construtiva, inclusiva e transparente.
• Nosso objetivo a curto-prazo é ter abastecimento constante de água limpa, com qualidade de potabilidade humana , com zero de metais pesados (Cádmio em especial), com controle de qualidade semanal e comunicação transparente dos resultados à comunidade.
• Nosso objetivo a longo-prazo é a aumentar a resiliência da Freguesia através de soluções sustentáveis, localizadas, descentralizadas, com baixo custo energético e com suficiente redundância sistémica .
Nossa esperança é chegar a uma solução de curtíssimo prazo que proteja a saúde publica, que se alinhe no princípio da prevenção consagrado nas normas da UE e que obedeça o espírito das leis vigentes nas áreas da saúde e ambiente.
Temos aprendido muito com este exercício, especialmente sobre o lado tortuoso (mas positivo) da cooperação entre a comunidade, representantes públicos, empresa e reguladores. Por outro lado, o exercício tem nos dado uma perspetiva privilegiada para avaliar os impactes de uma possível (outros diriam, provável ou em curso) privatização da água no Alentejo.
Para ver mais sobre a situação da agua em São Luís, favor seguir para https://transicaosaoluis.wixsite.com/agua